Artigos

Edmundo Fernandes Dias: a pedagogia como política e a política como pedagogia

05 de Dezembro de 2016 às 09:12:44

Os organizadores do VIII Colóquio Internacional Marx Engels que dirigisse algumas palavras aos presentes em homenagem a meu mestre e amigo, o professor Edmundo Fernandes Dias, falecido em 2013.[1] Para ser justo, e justiça era algo importante para o homenageado, é necessário iniciar parabenizando o diretor do Cemarx, Sávio Cavalcanti, pela realização deste momento e felicitando o professor Armando Boito pela iniciativa e sua insistência para que esta tivesse lugar. Embora extremamente importante esta não era uma iniciativa óbvia e quem quer que tenha passado aqui os últimos 20 anos, um tempo considerável, sabe que o professor Boito não era o proponente esperado. Ainda assim ele tomou a iniciativa e com seu gesto marcou com generosidade a abertura deste colóquio. Por isso, além de felicita-lo gostaria de agradecer-lhe por ter feito o que eu não fiz.


Edmundo foi professor do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, fundador do Cemarx, participou dos primeiros momentos da revista Crítica Marxista e a partir do final dos anos 1990 engajou-se de maneira intensa e despojada ao esforço de fundar e consolidar a revista Outubro, juntamente com alguns jovens intelectuais e outros nem tanto. Agitador político e cultural incansável, foi uma liderança sindical destacada no Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN) e em sua seção sindical em nossa universidade, a Adunicamp, e também fundador e primeiro coordenador nacional da Associação Brasileira de Educadores Marxistas.


Foi no movimento sindical que Edmundo se projetou e tornou-se conhecido e querido de muitos em todo o Brasil. Encerrados em nossas universidades talvez não tenhamos a dimensão exata do papel que desempenhou na consolidação do Andes-SN e na formação de novas lideranças sindicais. Para ilustrar essa importância lembro que na longa entrevista que concedeu para revista do sindicato, Universidade & Sociedade, em 2003 quando já era uma voz minoritária devido a suas opções partidárias, foi apresentado, sem meias palavras, como “ ‘o arquivo’, a memória viva do sindicalismo docente brasileiro” e “o intelectual (…) mais identificado com os problemas da classe trabalhadora do país” (Bezerra, 2003, p. 215).


Nessa mesma entrevista, Edmundo expressou-se a seu respeito de uma maneira que aqueles que o conheceram bem ouviram mais de uma vez: “Vivi a passagem de alguém que pretendia ser um bom professor a um militante que tentava unir as duas coisas: fazer política como quem ensina e ensinar como quem faz política” (idem).


Estas duas atividades nas quais foi mestre marcante – o ensino e a política – foram destacadas em mais de uma oportunidade por aqueles que escreveram para homenageá-lo. Podemos lembrar, por exemplo, o belo texto que o professor do Departamento de Sociologia da USP Leonardo Mello e Silva escreveu em memória de seu vizinho em Barão Geraldo, no qual destacou seu papel como professor. Ou aquele que Sueli Guadelupe de Lima Mendonça, Lívia de Cássia Godoi Moraes e Lalo Watanabe Minto publicaram, ressaltando sua militância política.


Mello e Silva relembrou, de maneira a meu ver correta, que em seus últimos anos Edmundo vivia uma “relativa marginalidade diante dos colegas de profissão (…) na Universidade e, dentro dessa última, nos cursos de Ciências Sociais” (Silva, 2013, p. 417). E argumentou que essa posição se devia a uma mudança da própria instituição universitária, instituição que associou de maneira cada vez mais intensa uma ética produtivista a uma neutralidade axiológica que cindia inapelavelmente ciência e política, uma posição com a qual o velho mestre não podia e não queria conciliar. Daí sua aposta na política, que ele via não como uma porta de saída da universidade, mas como o caminho que permitiria reencontrar a universidade crítica que ele desejava.


Talvez por ter apostado de maneira tão intensa na política sua contribuição às ciências sociais brasileiras seja subestimada e seja para alguns óbvio dizer que sua contribuição mais valiosa “talvez não esteja em sua produção teórica”. Evidentemente Edmundo rejeitaria essa distinção entre teoria e prática. Para ele seus escritos teóricos voltados para a história do pensamento de Antonio Gramsci ou suas análises sobre a sociedade brasileira eram intervenções políticas voltadas a conformar uma nova hegemonia. Mas o que quero destacar aqui é outra coisa, é, justamente, o fato de que a produção teórica de Edmundo é responsável por ao menos três feitos notáveis os quais tem um forte impacto em algumas áreas das ciências sociais. Reconhecê-los é uma maneira de homenageá-lo


O primeiro feito encontra-se registrado em sua tese de doutorado sobre o pensamento de Antonio Gramsci, defendida em 1984 com o título indecifrável de Democracia operária (Dias, 1987) e republicada mais tarde com o título Gramsci em Turim (Dias, 2000). É um livro que, como se sabe, está voltado à análise dos escritos de juventude do marxista sardo. Nele Edmundo radicaliza uma tese já presente em Christine Buci-Glucksmann e argumenta que o conceito de hegemonia se encontrava “em estado prático” já em 1916, uma tese que era exposta de modo que poderíamos chamar de althusseriano, repercutindo a admiração que nutriu intensamente pelo filosofo francês.


Em 1984, os textos do jovem Gramsci eram muito pouco conhecidos no Brasil e completamente desvalorizados em detrimento dos Quaderni del carcere. Mesmo assim Edmundo escolheu estes como suas fontes principais e esquadrinhou-os com vistas a construir seu argumento. Lembro de uma vez ter protestado que as inúmeras citações tornavam a leitura difícil e ele ter me respondido que precisou citar intensamente os textos porque no Brasil ninguém os conhecia. Mas não é apenas na escolha arriscada do objeto que reside o feito e sim no modo como a pesquisa foi operacionalizada.


Em Gramsci em Turim, Edmundo antecipou uma modalidade de investigação que demorou mais de 20 anos para se consolidar nos estudos gramscianos brasileiros. Por um lado, enfatizou as fontes do pensamento gramsciano, procurando reconstruir o ambiente intelectual de sua época, e por outro empenhou-se em contextualizar o pensamento de seu querido autor nos conflitos políticos da Itália das primeiras décadas do século XX e, particularmente, naqueles que tiveram lugar entre o início da Primeira Guerra Mundial e o chamado biennio rosso (1919-1920).


Em um país que herdou das escolas francesas a chamada “leitura estrutural”, a qual recomendava afastar o texto do contexto e divorciá-lo da biografia do autor, Edmundo assumiu o risco de tratar o texto como um evento histórico. A conjuntura política não era um “cenário”, “pano de fundo”, ou uma “moldura”, metáforas artísticas que frequentemente são utilizadas para ocultar o fato de que ela é irrelevante para a pesquisa. Em Gramsci em Turim a conjuntura era o que permitia reencontrar o sentido do texto, ele próprio um ato político. Essa opção metodológica implicou em um esforço colossal para a época, um empreendimento que levou a cabo literalmente sozinho, sem contato pessoal com os estudos gramscianos feitos na Itália. Em certo ponto de sua investigação achou necessário para a pesquisa escrever uma história da Itália do giolittismo até a fundação do PCd’I em 1921, um texto com quase duas centenas de páginas que só muito tempo depois foi publicado com fins didáticos. Mais importante do que a tese central do livro, e uma conquista certamente mais duradoura, foi assim o método mobilizado para sua investigação, uma perspectiva que se demostrou importante para a reorientação dos estudos gramscianos no Brasil.


O segundo feito do trabalho de pesquisa de Edmundo nasce com esse mesmo livro, mas encontra seu momento de máxima expressão em alguns ensaios inscritos em uma obra coletiva chamada O outro Gramsci (VVAA, 1996). Aqui ele assentou as bases para uma leitura diferente da obra do marxista sardo, uma abordagem que rompia e questionava decididamente aquela que o eurocomunismo havia inspirado e que foi difundida no Brasil por intermédio de Carlos Nelson Coutinho e dos renovadores do PCB, mas que também se debatia com as versões liberais, inspiradas em um conhecido texto de Norberto Bobbio.


O movimento intelectual realizado por Edmundo era politicamente orientado. À apropriação do pensamento de Gramsci por alguns dos dirigentes políticos mais moderados do Partido dos Trabalhadores, ele respondeu com um outro Gramsci, completamente inadequado a um neorreformismo. Não foi à toa que o artigo no qual contestou mais intensamente as leituras eurocomunistas e liberais tenha sido publicado justamente na revista Teoria & Debate. Mas cabe aqui destacar os efeitos que esse movimento político teve no terreno da teoria. No esforço para resgatar Gramsci como um pensador revolucionário Edmundo jogou uma nova luz sobre o conceito de hegemonia o qual em seus textos passou a significar a afirmação de uma nova racionalidade, fundamento de uma forma civilizacional diversa à qual teria como pressuposto uma ruptura política com a ordem social e política precedente Com essa radicalização do pensamento gramsciano, conceitos pouco valorizados até o momento nos estudos brasileiros, como crise orgânica e fordismo passaram a ocupar um novo lugar, abrindo as portas para estudar, a partir de Gramsci, as crises políticas e as respostas possíveis a elas com uma perspectiva fortemente antideterminista. Se o pensamento de Antonio Gramsci pode hoje inspirar uma política revolucionária isso se deve, em grande medida àquele movimento teórico e político que Edmundo realizou.


O terceiro feito leva Edmundo para além dos estudos gramscianos e o coloca no centro da sociologia pública brasileira. No início dos anos 1990 O Brasil começou a viver os efeitos da chamada reestruturação produtiva. O livro pioneiro de Ricardo Antunes (1995) reconstruindo criticamente o debate internacional influenciou um grande número de pesquisas. Mas é pouco conhecido que concomitantemente Edmundo trabalhava a partir de uma vertente teórica diferente, a qual prospectava o impacto político das transformações na esfera da produção. O ponto de partida dessa investigação, que ele levou a cabo juntamente com a professora Angela Tude de Souza e um grupo de jovens investigadores era uma releitura do quaderno 22, aquele que Antonio Gramsci dedicou na prisão à análise do americanismo e do fordismo. Nessa leitura, Edmundo redescobriu o conceito de revolução passiva como uma chave de interpretação das transformações moleculares que se verificavam na esfera das forças produtivas e das relações de produção (Dias, 1997).


Com essa redescoberta abriu-se um novo e importante campo de pesquisa que permitiu que uma vertente da sociologia do trabalho praticada no Brasil se encontrasse com aquela vertente que nos Estados Unidos, no final da década passado, assumiu explicitamente sua vocação pública e sua conexão com os movimentos sociais. O caminho que levou a esse encontro começava e terminava com Gramsci. Mas as pontas eram bastante diferentes. Enquanto no Brasil a ênfase era posta cada vez mais na noção de revolução passiva, nos Estados Unidos a ideia chave era a de hegemonia. O que permitiu esse encontro foi uma leitura da revolução passiva que enfatizava o fato desta ser a forma restrita que a hegemonia burguesa assume no capitalismo contemporâneo e por meio da qual tem lugar processos de inovação e conservação da ordem política e social. Esse encontro inesperado permitiu o desenvolvimento de uma sociologia pública brasileira sediada em centros de investigação localizados em São Paulo, no Rio de Janeiro e na Bahia e fortemente internacionalizada.


Destacar essas três importantes realizações e seu impacto duradoura em algumas áreas das ciências sociais brasileiras é também lembrar que para Edmundo prática teórica e prática política mantinham um nexo orgânico profundo. Esta é talvez a principal lição que ele nos deixou. Uma aguda percepção de que não apenas por meio da teoria estamos fazendo política, mas que a intervenção política é também um ato de alcance teórico, na medida em que é o único que pode mudar efetivamente as condições nas quais vivemos e pensamos. O que nos resta então dizer é: Obrigado, mestre; obrigado, companheiro.


 


Fonte: Blog Junho