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Violência sexual, racismo e homofobia na Faculdade de Medicina da USP são denunciados em audiência pública na Alesp

17 de Novembro de 2014 às 01:11:24


"Estupro sim, o que é que tem? Se reclamar, eu estupro você também", cantam alguns estudantes para intimidar as colegas

Depoimentos fortes de estudantes, na sua maioria mulheres, que foram vítimas de práticas de abusos sexuais, estupro, homofobia e racismo ocorridas na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) marcaram a audiência pública da Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, da Cidadania, da Participação e das Questões Sociais (CDH) da Assembleia Legislativa (Alesp) realizada em 11/11 no Auditório Paulo Kobayashi.










Daniel Garcia


Participaram os deputados Adriano Diogo (PT), presidente da comissão, Marco Aurélio de Souza (PT), Beth Sahão (PT) e Leci Brandão (PCdoB); a promotora Paula Figueiredo Silva, do Ministério Público Estadual (MPE); os professores Paulo Saldiva e Milton Arruda, ambos da FMUSP, e Francisco Miraglia, representante da Adusp. Logo no início, Adriano alertou para a grande importância da audiência, já que havia sofrido pressão para que ela não fosse realizada: "Nem como presidente da Comissão da Verdade, com audiência de militares e torturadores, eu fui tão pressionado para não realizar uma audiência. Então vamos ter o maior carinho, cuidado e precisão".

Há dois meses, a promotora Paula Figueiredo, da Promotoria de Direitos Humanos do MPE, recebeu denúncia de um caso de violação de direitos humanos na FMUSP: "O que estava sendo narrado para mim naquele momento não eram violações pontuais que exigiam respostas também pontuais, mas a existência de uma realidade de discriminação e de exclusão das minorias, especialmente mulheres e homossexuais", relatou.

Além de a Promotoria acompanhar individualmente os casos, foi instaurado um inquérito público civil, com o objetivo de fortalecer a cultura de direitos humanos na faculdade, os movimentos que representam as minorias e os mecanismos institucionais de apuração e repressão a violações. "É importante que a própria faculdade reafirme sua posição de tutela dos direitos fundamentais, aplicando medidas administrativas quando constatar que há violações", disse Paula, que também oficiou à FMUSP e espera resposta.

Redes de poder

Violências sexuais são cometidas contra as calouras, por ocasião dos trotes promovidos por alunos veteranos, mas são generalizadas ao longo da graduação. O professor Antonio Ribeiro de Almeida Jr. (da Esalq, unidade na qual também há um preocupante histórico de trotes), que realiza um trabalho de pesquisa do trote desde 2001, identificou um tipo de instituições nas quais o trote é recorrente, histórico, profundamente enraizado, violento e onde não há qualquer tipo de punição. Estas instituições são aquelas que ensinam profissões capazes de conferir aos seus alunos grande status social, como medicina, engenharia e direito.

"Existem grupos de poder que usam o trote como processo de seleção. O trote não tem nada a ver com integração na universidade, é um mecanismo de exclusão", explicou Almeida Jr. "A cultura do trote é bárbara, porque ele precisa ser violento para selecionar. O que se quer saber é se aquela pessoa obedecerá às ordens e se ficará em silêncio mesmo diante de afrontas, que a magoam, machucam e submetem. Para que isso? Para essas pessoas se tornarem confiáveis para ocupar cargos dentro da universidade e posições em que o silêncio é necessário".

O professor Marco Akerman, da FSP, que também estudou a cultura do trote, afirma: "Existe um reino do silêncio e do medo dentro das faculdades de medicina em relação ao trote". Na sua pesquisa, ele perguntou aos estudantes por que se submetiam ao trote. Diagnosticou que, de uma turma de 100 pessoas, 15 não se submetem (e portanto serão excluídos ao longo do curso), enquanto outros 15 são brancos, ricos, heterossexuais, bonitos e gostam de esporte.

"Esses 15 alunos são os trotistas, que estabelecem redes de poder com os 15 alunos do ano anterior e com os 15 alunos do ano seguinte; e a escola da Faculdade de Medicina, como todos os seus anos de existência, estabelece uma rede de poder que chega aos professores, aos hospitais, às empresas de convênio e que marca a prática médica", explica. "Os outros 70 do meio sofrem muito, eles nem querem ser excluídos, nem querem ser parte desse processo".

Perseguições

Alunas, que preferem não ser identificadas para evitar perseguições, contaram na audiência da Alesp como sofreram abusos sexuais mais de uma vez em festas. A própria estrutura desses eventos é pensada para facilitar os crimes, com seus "cafofos" e depósitos, que acabam sendo usados para esses fins. As vítimas são colocadas sempre no papel de culpadas pelas próprias agressões que sofreram, são questionadas e orientadas a não denunciar, "porque não teriam como provar". Houve casos, disseram, em que a Congregação da FMUSP chegou à conclusão consensual de que o problema foi o excesso de álcool e não as violências cometidas.

Muitas vezes, é de integrantes da Associação Atlética que as agressões partem (por outro lado, quem se dispuser a fazer parte da Atlética e não cumprir com suas obrigações é submetido a castigos físicos e torturas, conforme denúncia de um ex-membro). Em vários casos, o próprio Centro Acadêmico (CAOC) nega apoio às vítimas. Enquanto isso, certos estudantes cantam impunemente: "Estupro sim, o que é que tem? Se reclamar, eu estupro você também".

Foram relatados casos de discriminação. Uma estudante negra foi impedida de entrar na faculdade mesmo apresentando a carteira de identificação. Um estudante homossexual contou como foi barrado em uma festa e sofreu agressão física de seguranças, porque a orientação dada pelos organizadores era de que só eram permitidos casais heterossexuais no local. Os estudantes organizados no Coletivo Feminista Geni e no Núcleo de Estudo em Gênero, Saúde e Sexualidade (NEGGS) são discriminados e ridicularizados publicamente.

"Os problemas da Faculdade de Medicina vão muito além do consumo excessivo de álcool, nós temos uma crise de valores que não é exclusiva da nossa faculdade", afirmou o professor Paulo Saldiva, que até a data da audiência presidiu o que era, inicialmente, uma comissão interna criada para estudar o consumo de bebidas alcoólicas, mas que logo precisou voltar-se para outras questões, como abusos e violências. Os trabalhos da comissão foram concluídos em outubro e o relatório produzido será submetido à Congregação de 27/11. "Pecamos pela omissão, eu como professor conheci na comissão uma faculdade que não conhecia", afirma Saldiva, que se desligou da comissão e anuncia que deixará a FMUSP.

Durante a audiência, o professor Francisco Miraglia manifestou indignação frente aos relatos e à falta de providências por parte da FMUSP e da Reitoria. Além disso, propôs ao Coletivo Feminista Geni a construção de uma interação com o Grupo de Trabalho de Etnia, Gênero e Classe da Adusp e do Andes-SN, para efetuar a divulgação e denúncia dos graves problemas existentes na relação entre estudantes na FMUSP, bem como debater propostas de ação conjunta.

Em resposta às denúncias feitas na audiência e a uma chocante reportagem publicada pelo portal de jornalismo investigativo Ponte, a FMUSP anunciou a criação de um Centro de Defesa dos Direitos Humanos. A diretoria da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP), citada na audiência em um caso de racismo, manifestou "grande preocupação diante das notícias, veiculadas na imprensa, sobre músicas e letras com conteúdo racista existentes no meio estudantil de nossa Unidade".

Informativo nº 393 ADUSP