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Feminismo e marxismo: Um ano sem Heleieth Saffioti

08 de Março de 2016 às 09:42:02

Renata Gonçalves e Carolina Branco


Resumo: Em 2008, ocasião das comemorações dos 40 anos de Maio de 1968, entrevistamos Heleieth Saffioti em seu amplo e iluminado apartamento. O mote era ela contar o que fazia naquele ano, onde vivia, quais eram suas atividades, quais as impressões do período e quais as contribuições deste às Ciências Sociais. As lembranças eram tantas e tão intensas que sua narrativa se restringiu aos acontecimentos que vão de 1961, quando concorre e ganha o cargo de professora da Unesp de Araraquara, a 1967, ano de defesa de sua tese de livredocência, depois transformada no livro A mulher na sociedade de classes. Temos o privilégio de apresentar, por meio do relato ininterrupto, a construção do pensamento irreverente da feminista-marxista precursora dos estudos de gênero no Brasil. Num mesmo movimento, de sua narrativa emerge parte das tramas da consolidação das Ciências Sociais no país.


Palavras-chave: Heleieth Saffioti. Ciências Sociais. Marxismo. Feminismo.


Eu já tinha meu cargo na rede estadual de ensino porque eu fui cadeira prêmio da Caetano de Campos e nem eu nem o Saffioti1 tínhamos qualquer pretensão de ir para o interior e ele trabalhava na Caetano de Campos e na USP. Ele não queria tempo integral na USP porque... bom, é uma história muito longa que eu não vou contar, mas tinha ficado vinte e tantos anos sem haver concurso e quando houve ele foi o primeiro colocado e tanto que ele e o segundo colocado, o Geraldo, foram convidados para escrever um livro e os livros venderam.


A Caetano de Campos era considerada uma verdadeira faculdade, tanto que eu sei o português o tanto que eu sei graças à Caetano, que era uma escola modelo. A gente estudava latim, a nossa professora de francês era francesa. Enfim, o que se estudava ali se aprendia mesmo. Claro que depende do aluno também e eu sempre fui muito CDF. E então eu tinha meu cargo, mas eu tinha ficado 4 anos comissionada. Eu estava no primeiro ano da faculdade quando eu me casei e nós fomos morar lá nos Estados Unidos. Tinha ficado, portanto, um ano afastada sem vencimentos e mais quatro comissionada com vencimentos. Eram cinco anos fora do cargo. E o Saffioti foi convidado para montar o primeiro curso de Química e depois o Instituto de Química e ele era um sonhador, um visionário. Ele achava que era possível uma Universidade que não fosse um saco de gatos, porque a USP sempre foi. 


A gente morava aqui, eu tinha voltado para o meu cargo na faculdade onde eu tinha ficado muito pouco tempo. Mas quando o Saffioti foi convidado a montar o curso de Química, era muito difícil naquela época, não havia gente com qualificação formal e nem informal. Ele vivia em consulados para trazer gente de fora porque no país não havia. Também na área da química havia outro problema: a indústria pagava três vezes mais. Então, foi muito difícil conseguir gente para lecionar lá. E ninguém tinha doutorado porque quem trabalha na indústria não se preocupa com isso, ainda que faça pesquisa, faz até mais pesquisa que muito acadêmico. Mas não tem essa preocupação porque a indústria não promove de acordo com teses e estas coisas, o critério é outro.


E em 1961, o Saffioti viajava, ele dava as aulas aqui e viajava para organizar o curso de química lá. Ele deixou a USP, ele não deixou a Caetano porque ele era efetivo, enfim. Eu também era efetiva, então eu não podia deixar. O aluno que passava em primeiro lugar tinha o direito de escolher em primeiro lugar. Ele passava na frente de substitutas que tinham ido para o interior e amassado barro, enfim. Era até um critério duvidoso, mas o fato é que existia e eu escolhi capital, claro, fiquei em São Paulo. Se eu não tivesse ganho a cadeira prêmio, eu teria ido para uma biboca qualquer. Quando chegou o quinto ano, nós fizemos uma avaliação e não gostamos do tipo de vida que nós estávamos levando. Então, resolvemos que eu tinha que ir também para Araraquara. Só que eu não queria ir para o meu cargo. Eu poderia ser até escriturária da faculdade, não interessava. Qualquer coisa eu faria na Universidade. Eu queria ir para lá, tanto que eu não especifiquei o cargo, eu pedi um comissionamento para a faculdade. E a Secretaria da Educação, com toda razão, negou. Claro, eu tinha ficado 5 anos fora. E a única maneira de obrigar a me darem o comissionamento – porque era lei, eles seriam obrigados a dar – era prestar um outro vestibular. Não havia Ciências Sociais lá, havia Pedagogia. E eu presto novo vestibular, entro em primeiro lugar e aí eles serão obrigados a me comissionar. Fiz isto, prestei vestibular para Pedagogia e depois fui dar aula para tudo tanto é qual eu havia feito o vestibular. 


Bom, quando eu fiz o último exame, o Luiz Pereira me convidou para trabalhar com ele. Naquela época a pós-graduação não estava organizada. Ela só foi organizada em 1978. E isto foi em 1962, comecinho de 1962. Quando eu fiz o último exame, ele me convidou e aí a coisa mudou de figura. Eu já não ia mais ser estudante, eu ia ser professora. E penei como vocês não podem imaginar, porque eu me dei conta de que eu era uma ilustre ignorante, porque eu estava recém saída da faculdade. E olha que eu fui primeira aluna na USP, CDF como uma coisa, mas que ignorante! E na USP, a coisa mais avançada que eu tive foi Mannhein. Marx era dado pelo Aziz Simão, coitado, ele não podia ler, era cego. Quem lia para ele, era a mulher dele. Naturalmente, eram textos escolhidos por ele. De Marx, o que eu fiquei sabendo, porque se não aprendesse, havia uma deformação muito grande, é que para Marx o que contava mesmo era a Economia, que o fator determinante era a economia. Então, eu não sabia porra nenhuma. Quando eu percebi que eu não sabia nada de nada, eu dormia 3 horas por noite, estudava feito louca. E o Luiz não tomava conhecimento de mim. E, pior que isso, ele e o Fausto Castilho haviam planejado o curso de Ciências Sociais, aliás muito bem planejado. Havia 4 anos de... até o de Pedagogia foram eles que planejaram, havia 4 anos de sociologia, 4 de filosofia. Então, o curso de Ciências Sociais era considerado superior ao da USP. Só que ele não havia começado a funcionar, começou em 1963. Então, em 1962, embora não tomassem conhecimento da minha existência, estavam lá e qualquer coisa, eu poderia perguntar a eles.


Eu vinha muito a São Paulo, tinha meus contatos aqui, comprava livros. Enfim, cortar o cordão umbilical com São Paulo eu não queria e não podia.


Os primeiros anos foram de trabalho intensíssimo. No início de 1963, começou a funcionar as Ciências Sociais e o Luiz veio embora, veio para a USP. Primeiro trabalhando sem contrato no CESIT (Centro de Estudos da Sociologia Industrial e do Trabalho) esperando uma vaga para entrar como docente. E acabou acontecendo isto. Engraçado porque nós ficamos muito amigos, éramos como irmãos, depois que ele veio embora, enquanto ele estava lá não foi assim.


Aí foi duro porque havia 4 anos de sociologia em Pedagogia, um em Letras. No doutorado o curso era anual. Como não havia pós-graduação, o modelo que se usava para o doutorado era o francês. Não havia curso para doutorado, o cidadão fazia a tese e defendia.


Primeiro eu me inscrevi para fazer Especialização com o Octavio [Ianni], mas não havia tempo para fazer a Especialização. O volume de trabalho, 4 anos em pedagogia, 1 em Letras, já são cinco; e a cada ano que passava tinha mais um de Ciências Sociais. Quer dizer que em 1963, eu já tinha seis cursos anuais de trabalho, sozinha. Bom, eu não sei como eu não pirei porque eu fiquei sozinha com o professor de matemática. Então, eu tinha que dar um pouco de cada coisa porque os alunos não podiam ficar sem. Por isso que eu digo que eu não tinha tempo para dormir, não tinha tempo para nada, porque para não fazer muito feio, eu precisava estudar muito. Então, como eu já fui contratada em tempo integral, eu tinha que fazer um projeto. Eu não sabia fazer projeto porque eu nunca tinha feito na vida, ninguém nunca me ensinou também. Eu fiz o tal do projeto de pesquisa. Eu até depois redigi a pesquisa, mas ficou um texto de circulação restrita. Porque eu me entusiasmei tanto com as temáticas, que os dados que eu coletei era sobre professoras primárias e operárias da indústria têxtil e é curioso porque eu já entrevistei os maridos das que eram casadas, companheiros, namorados. Nunca ninguém precisou soprar no meu ouvido que era relacional porque tudo em sociedade é relacional. Quando eu vejo esse termo, fico furibunda porque foi a grande descoberta: “é relacional”?! O que não é relacional? Basta saber o “beabá” da sociologia para saber que é relacional. 


Escolhi este tema, comecei a coletar os dados. E o que eu lia? O que havia para ler no Brasil? Era um desastre. Havia Grandes damas do II Império e coisas assim desse estilo. Havia um livro da Rose Marie Muraro, mas aí já pertinho do momento em que eu defendi a tese e que era um livro adotado por colégio de freiras. A Rose tem uma origem muito religiosa, muito católica, tanto que a AP2 surgiu na casa dela – agora há pouco ela me ligou, ela me liga a todo minuto. Então, as idéias não batiam. Eu só fui conhecer a Rose depois que meu livro fez sucesso, não apenas aqui, mas na França. O pessoal que estava na França lia, fazia seminários, e depois foi publicado nos Estados Unidos. E quando a Rose Marie Muraro trouxe a Betty Friedan – porque lançou o livro dela e trouxe-a – é que ela foi me conhecer, ela é que se deslocou, foi a Araraquara para me conhecer. Embora não soubesse nada de Marx, estudava feito louca porque eu queria ser marxista. E sou uma marxista autodidata, porque o Fausto prometia, prometia um curso sobre Hegel que ele nunca deu, porque a gente sempre foi folgada. E o Luiz também só sabia para o gasto e além de tudo ele era pedagogo, não era sociólogo. Não que isso o desmerecesse porque ele era muito inteligente e superou isso com facilidade, tanto que o Estatuto da ASESP (Associação dos Sociólogos do Estado de São Paulo) foi alterado por causa dele, porque só sociólogos podiam ser presidente. E quando quiseram que ele fosse, alteraram o Estatuto. Em 1964 veio o golpe e o pouco que eu sabia de marxismo, eu ensinava. Uma coisa que eu introduzi e que acho que foi bom para os alunos e para mim era o seguinte: no primeiro ano, os alunos eram obrigados a se organizar em grupos e cada grupo escolhia um assunto e fazia hemeroteca daquele assunto. Então, cada grupo tinha uma pasta e nesta pasta se colava os recortes de jornais e se fazia uma apreciação do artigo. E uma hora por semana era dedicada à discussão da conjuntura brasileira. Isto foi muito bom porque politizou todo mundo. Ainda mais que veio logo o golpe porque o curso começou a funcionar em 1963 e logo no começo de 1964 veio o golpe. Então, era o momento mais interessante de todas as aulas. E tinha muita aula. O nosso módulo era de quatro horas e muitas vezes eu não dava intervalo, eu raramente dava intervalo. Eu não sei como aguentei. Olhando para trás, eu penso: “puxa, já trabalhei nessa vida! Eu comecei a trabalhar, eu não tinha 10 anos. Eu tenho 73 anos, então tem mais de 63 anos que eu trabalho”. E não é fácil trabalhar assim de varar a noite ou dormir só 3 horas. Enfim, não foi fácil.


Depois as coisas melhoraram um pouquinho porque eu consegui uma verba e contratei uma pessoa, mas era tudo sem pós-graduação, não havia no país. Quando eu vi que não havia possibilidade de fazer tudo, ainda mais que veio o golpe, eu falei: “vou diretamente para o doutorado porque isto é ainda possível”. Os alunos não sabem, mas é possível. O regulamento da pós-graduação no Brasil permite isso. Claro que precisa ter um certo currículo, não pode ser qualquer um, mas tendo publicado alguns artigos, pode sim fazer o doutorado. Porque o mestrado o que é? É uma extensão da graduação. Não dá para definir o mestrado como um doutorado de má qualidade. O doutorado exige uma contribuição teórica; que ele está acima do mestrado, não tenho dúvida, mas não é pelo ruim que a gente define o mestrado. Eu acho que o mestrado é uma continuidade da graduação com vistas ao doutorado.


Então me inscrevi para fazer o doutorado com o Florestan. Eu sabia pelo Luiz Pereira, porque o Luiz Pereira não queria mulher, ele falou para mim. Misógino que era um horror! Não queria mulher de jeito nenhum e ele procurava homem para ser assistente dele. E o Florestan, quando apresentava um homem dizia: “até pode ser, é razoável, mas eu não jogaria minhas fichas nesse fulano, eu jogo na Heleieth”. Insistiu no meu nome até que ele se convenceu de que tinha de ser eu. Então o Florestan desempenhou uma função importante na minha carreira. E é curioso porque teoricamente eu sou muito mais vinculada ao Antonio Cândido do que ao Florestan, porque politicamente o Florestan era socialista, mas teoricamente ele jamais abandonou as categorias positivistas. Mas é uma figura pela qual eu tenho um enorme respeito, porque era honesto, desempenhou uma função histórica importantíssima no Brasil. Não fora ele, acho que a gente estaria na época ainda do Gilberto Freyre da crônica social e não da sociologia. Claro que era positivismo porque a formação dele foi em etnografia com os americanos na sociologia e política, mas o que ele pôde, ele fez. Aos 24 anos ele traduziu a primeira parte da Ideologia Alemã. A meu ver, ele leu Marx inteiro com categorias positivistas. Mas não foi só Marx, Weber também. Se tomarem a Livre-docência dele, que é aquele ensaio que está no livro Fundamentos empíricos da explicação sociológica, não me lembro o nome do ensaio, mas é um em que ele tenta compatibilizar os três métodos, os três pilares da sociologia: Durkheim, Weber e Marx. Ele não consegue. Claro, são incompatíveis! Ou a realidade é dialética, e aí o método também tem de sê-lo, ou não é. Porque não é um pedaço assim e um pedaço assado, enfim. Mas foi uma grande criatura humana e eu lamento muito a morte dele, gostaria que ele estivesse vivo até hoje.


Bom, eu estava inscrita. Acontece que eu dava tanta aula e tinha que estudar tanto, que não sobrava tempo para escrever. E havia na Unesp uma norma muito injusta, independentemente do momento em que o professor houvesse começado sua carreira acadêmica, ele tinha até dezembro de 1966 para entregar sua tese fosse de doutorado ou de livre-docência, porque também pode fazer a livre-docência diretamente. Eu queria fazer o doutorado, depois a livre-docência, mas não me foi dada a possibilidade. Um pouco antes do 31 de dezembro de 1966, eu sentei e falei: “agora eu tenho que parir uma tese; porque sendo mulher e marxista, eles vão me botar na rua, é obvio. Os homens não precisam fazer e os não-marxistas tampouco, mas eu tenho que fazer!”


Simone; li um livro da Alva Myrdal e Viola Klein3 . Estes textos existiam ou em francês ou em inglês, em português nada. O Segundo Sexo, sim. Mas o da Alva Myrdal e Viola Klein, não. E o outro de uma francesa que era sobre operárias industriais, era em francês. O nome dela era Evelyne Sullerot4 . E havia aqueles textos clássicos da Kollontai, que eu não gosto; da Clara Zetkin, que é um pouco melhor, mas a meu ver tem mais ideologia do que ciência. Nem mesmo os textos marxistas me contentavam. E eu era muito metida, isso eu sempre fui, acho que já nasci assim, porque senão teria me recolhido à minha santa ignorância e ao meu destino de gênero e de classe. A única coisa que me favorecia era ser branquinha, porque o resto era uma tragédia. Mas eu resolvi mudar as coisas. Em sessenta dias (vinte dias em um mês, vinte no outro e vinte no outro) porque além de tudo foi um período bem conturbado. Não, não... eu estou falando da segunda redação...


A primeira redação fiz e trouxe para o Fefê. Ele marcou um dia para eu vir e ouvir as críticas. Fiquei cinco horas ouvindo que não prestava. Quer dizer: tudo o quanto foi crítica ele arranjou para falar da minha tese e, ao mesmo tempo, ele dizia: “você não irá para doutorado, você irá diretamente para a livre-docência”. Eu dizia: “não professor, eu não quero, pois não presta! Como é que eu vou para a livre-docência pagã!?” Porque no doutorado você entra com padrinho, na livre docência você entra com o diabinho espetando com o tridente. Era muito contraditório. Eu não vou ter padrinho. Como é que vai ser? É lógico que eu vou ser reprovada. Foi uma angústia!


Por outro lado, o sistema de escolha dos membros da banca era o seguinte: quem melhor conhecia o pessoal da área era o candidato. Então, dependia muito da honestidade do candidato. Ele sugeria os nomes e a congregação aprovava. E procurei ser o mais honesta possível com o pessoal que estava no Brasil na época. Escolhi o Florestan, o Antônio Cândido e o Ruy Coelho, que era o catedrático da sociologia II – tinha duas cadeiras e o Florestan era da I –; a Gioconda Mussoline, que foi minha professora de Antropologia, porque eu queria muito uma mulher na banca, e Gioconda era ótima; e o Luiz Pereira, afinal trabalhei com ele, era uma pessoa super inteligente.


O Conselho Estadual de Educação resolveu fazer uma guerra contra mim. Era uma candidata comunista, uma banca comunista, porque era todo mundo da USP. Eu não sei como não enlouqueci viu, porque corria um boato de que eles trocariam todos os membros da banca. É evidente! Era o plano do Florestan! Eu confiava muito nele, mas com aquela história de fazer crítica... Olha, se tivesse um buraquinho no escritório dele, eu teria me enterrado lá. E, ao mesmo tempo, me informando para a livre-docência, eu dizia: “mas professor, eu quero fazer o doutorado!”. Ele dizia assim: “Mas eu não quero que você faça o doutorado! Você vai para a livre-docência”. Depois, quando entreguei a versão definitiva... porque sou sortuda demais, eu me arrisquei muito: as críticas que me pareceram pertinentes, eu acolhi, mas as que não me pareceram pertinentes, eu não dei bola! Fui mais arguta ainda, acho que fui mais convincente e ao mesmo tempo mostrei que não conhecia só aquilo, mas que era aquilo sim e que eu arriscava. Isto foi em 1966. Eu defendi em 1967.


Quando levo para ele a versão final, a gráfica da faculdade não tinha o sistema de colagem, era aquele sistema de costura com barbante e não dava para fazer um volume só porque tinha 522 paginas. Daria para fazer em dois, mas como o livro é dividido em três partes, se eu fizesse um volume grande e outro pequeno ia parecer um apêndice. Então, eu resolvi fazer três. Quando ele leu, disse: “mas não adianta, você é uma tonta mesmo! Você podia ter guardado o terceiro volume para fazer a cátedra!” – que havia ainda, a cátedra só acabou quando da organização da pós-graduação em 78.


Na cidade, o Saffioti e eu – olha que era grave nossa situação, nós dois éramos tidos como comunistas – e depois chegaram... o Saffioti que conseguiu o Tabak e de contra-peso veio a tal da Fanny. Então a cidade dizia que... porque eles ficaram um tempo na União Soviética, diziam que nós éramos da linha chinesa e eles eram da linha russa, enfim, umas besteiras. Mas a cidade nos recebeu muito mal, porque mulher sozinha era puta direto e mulher casada não recebia esse sobrenome, mas era no mínimo comunista, a não ser que fosse uma reacionária daquelas para não ser considerada comunista.


Quando eu vi que não havia outro jeito: ou eu ia para a docência me arriscando ou não ia, eu tive que concordar. Segundo a Nicole Claude Matthieu, não consenti, eu cedi. Estava numa posição de poder totalmente desigual, então era ceder mesmo ou não fazer tese nenhuma e ir para rua. Eu fiz. Ao mesmo tempo em que o Conselho Estadual de Educação fez guerra contra mim, fez também propaganda gratuita. Foi gente de tudo que era unidade da Unesp para Araraquara porque não se entrava na faculdade, porque era ainda no centro não era no campus, não tinha o campus. Tinha gente sentada no chão, nas escadas, quase que havia gente em árvore. E são várias provas a livre-docência, não é uma prova só como no doutorado. Tem outra coisa: não tinha título, eu não tinha publicações; quer dizer, essas duas notas foram baixas. Que nota eu podia ter sem titulo, sem o doutorado, sem publicações? Ou você acha que eu era capaz de publicar, além de fazer tudo? Eu era chefe do departamento, eu resolvia toda a burocracia, deus me livre! Um inferno! Aí defendi, mas como eu disse, nessas provas eu tive nota baixa, mas na defesa de tese, eu tive nota dez com todos! E eles mudaram dois nomes da banca: tiraram o Luiz e a... não tiveram coragem de mexer com os medalhões. O Antônio Cândido, o Florestan e o Ruy Coelho ficaram. Tiraram a Gioconda e o Luiz e puseram o Barbuy, que era um professor das Ciências Econômicas, papa hóstia, reaça, uma coisa horrorosa; e o Clemente Segundo Pinho, que tinha curso de filosofia, mas trabalhava na USP com literatura portuguesa, porque ele também tinha curso de letras e ele foi para Araraquara; deixou a USP e foi para Araraquara. Então para não dizerem que não havia alguém de Araraquara, pegaram este e botaram, não sei se alguém soprou. Porque em Araraquara havia os recém-qualificados formalmente, os que haviam defendido livre-docência, porque muita pouca gente foi para o doutorado. Em geral, todo mundo foi para a livre-docência. Eu acho que fui a única que não pude decidir, fui obrigada, senão eu faria todos os passos que, na época, era o doutorado, a livre docência. Depois, eu fiz o concurso de associado que agora não há mais. E Cátedra eu não pude fazer também, porque já era para titular, não era mais cátedra, já tinha caído. Mas eu não pude fazer porque nós éramos contratados por uma verba especial, e se nós nos inscrevêssemos para o concurso de titular e eventualmente fossemos reprovados, a verba se perderia. Então ninguém queria que se abrisse, não era o candidato, ninguém queria perder a verba. A vaga para titular sempre foi difícil, ninguém queria perder e nós fomos transformados em titulares pela constituição de 1967. Eu queria fazer o concurso porque me considerava capaz e até quando não era capaz, me considerava. 


Segundo me contou um membro da banca, o Conselho Estadual de Educa- ção disse ao Heraldo Barbuy: “olha, esta é que uma candidata comunista, você vai para lá com carta branca para reprová-la porque ela só leu o Manifesto do Partido Comunista”. E ele... isto ele contando que quando leu, viu que eu conhecia Weber, que eu conhecia Durkheim, que eu trabalhava com todos, mas descartando o que não me convinha, que não era verdade que conhecia só o Manifesto, enfim, e ele foi honesto. As mais baixas notas foram dadas por ele, mas ele me deu 10 pela tese. Na aula, eles foram muito mais rigorosos comigo do que com os meus colegas homens. Eu assisti à tese de um colega que disse que tinha usado para fazer a tese o mínimo de honestidade e foi aprovado com nota dez na aula. E a aula dele foi um horror! Eu só me lembro que todas as frases terminavam: “e assim por diante...” Ai, que horror! Mas a mim deram nove, todos, exceto o Barbuy que deu menos, deu 8 ou 8,5. Então, quando eu mostro meu certificado de livre-docência todo mundo me diz... porque a média foi 9,175, dizem “nossa, que nota baixa!”. Eu digo isso corresponde a vinte hoje! Porque hoje se você quiser responder, responde e se não quiser, não responde. Quantas eu vejo assim, se não tiver dez é uma catástrofe. E vejo cada uma que Deus do céu. Se pegassem a minha época, iam ver como é quando a porca torce o rabo! O nível de exigência era terrível! Precisaria encontrar meio termo e isso ninguém encontrou. Antes era excessivamente rígido e depois passou a ser excessivamente frouxo. Eu confesso que não estou contente. Se fosse obrigada a escolher, escolheria o anterior porque botava o pessoal ignorante para estudar. Sei que é duro porque passei por isso, mas para mim foi muito bom.


O carimbo de comunista já ganhei na medida em que trabalhei com o Luiz, que era ligado ao Fausto que já tinha o carimbo. Então era assim meio que por tabela e aí era comunista e não tinha quem tirasse esse estigma. Em 64 eu não tomei conhecimento. Continuei dando as minhas aulas da mesmíssima maneira. Não adocei nada, não camuflei nada, eu nem conheci a linguagem eufemística, para dizer a verdade. Sempre fui muito boca-rota, sempre disse tudo que pensava, continuei assim. Ouvi um boato de que seríamos demitidos e não sabíamos porque não havíamos sido. Só soubemos muito tempo depois por um dentista, que foi diretor da faculdade. Foi ele que nos contou que foi para lá com carta branca para fechar o curso, para fechar a faculdade se fosse o caso. Eles acreditavam no poder da esquerda. Não havia, mas eles acreditavam.


O critério foi o seguinte: quem tinha participação na ação, fosse armada ou não fosse – porque houve um momento que não havia tão armada – mas quem fosse militante, estava frito. Agora, o interior foi um pouco beneficiado, mas nem tanto, porque Brasília poderia ser considerada interior naquela época. Como timbre intelectual, era uma excelente Universidade, mas não havia o entorno. Araraquara sofreu uma baixa com a Fanny Tabak, mas foi porque... Eu não me lembro o porquê. O Tabak já tinha morrido, mas ele não foi aposentado nem demitido. Talvez ele tivesse morrido já. Com a Fanny aconteceu o seguinte: o sogro dela denunciou-a. Eles ficaram muitos anos escondidos numa fábrica do sogro e ele denunciou-a. Não sei se ele estava com raiva, se não gostava dela. Depois houve uma outra baixa com o Calil. Mas eu acho que foi merecida porque eu não suporto denúncia! Delação é horrível! Ele me contou que havia denunciado a Fanny sob segredo de confissão e havia um padre que era membro do Conselho Estadual de Educação. Isso eu não suporto, não vai goela abaixo! Sou muito rígida em termos éticos! Muito, muito, muito, mas eu não quero mudar, quero continuar assim. Se ele fez isso com ela, ele merecia porque boa bisca não era! Qual era o nome inteiro dele? José Calil Pardil? Qualquer coisa assim, professor de economia, mas morreu muito cedo também, deve ter sido castigo do diabo! Se ele se confessou com o padre, deve ter sido do padre. 


Eu continuei dando aula da mesmíssima maneira. No dia da aposentadoria dos professores da USP, eu não dei aula, fomos para a frente da faculdade, eu e os alunos, fazer arruaça. Claro, nós tínhamos que protestar! Não podia deixar passar em branco! Essa foi a única aula que eu deixei de dar. Depois, em 1968, piorou muito. Eu não tinha militância, não porque não quisesse ter, mas eu não tinha tempo para nada. De onde é que eu iria arranjar tempo para ser militante? Não podia. Então, tem uma razão. E acho que militância se faz em vários níveis, são muitas as instâncias: na sala de aula, no corredor da faculdade, quando escreve, quando faz conferência, quando conversa no boteco. Tem muitas maneiras de militar. Considerando no sentido lato, eu fui uma militante de primeira categoria. Mas no sentido stritu, não fui não, não fui porque não tinha tempo.


Com esse passado, é óbvio que eu era muito visada. Mas não era pela sociologia porque o Saffioti era químico e físico. É verdade que os físicos e sociólogos sempre foram mais alvejados no Brasil. Nos Estados Unidos não é assim, lá são os antropólogos. E o Saffioti não se considerava físico, se considerava químico. Estávamos destinados a pagar os pecados do mundo! Muita coisa aconteceu e outras deixaram de acontecer. Mas voltando ao que o diretor nos contou: ele foi com carta branca, não houve nenhuma punição por ato algum. Nenhuma! O que houve foi que com as delações – mas não apenas com as delações, porque o Fausto não foi delatado – simplesmente vencia o contrato das pessoas e a Universidade não renovava. O que poderia ter nos acontecido. Nós quisemos saber do diretor: sendo nós duas pessoas muito incômodas, por que ele nos poupou? Ele disse: “bem, não foi pelos belos olhos de vocês, foi porque dois cursos seriam fechados! Foi só por isso!”. Claro, ele não queria sujar o currículo dele, fechar uma faculdade, porque fecharia. Existia o quê? Pedagogia, Letras, Ciências Sociais e Química. Fecharia cinquenta por cento! Escapamos por isso, pela vaidade de um cidadão que não queria manchar o seu currículo. Mas também pela visão dele, porque nunca nos considerou comunistas. Um dentista muito mais sábio! Nós não éramos comunistas, éramos socialistas e continuamos a ser.


Mas foram tempos difíceis, a gente convidava uma pessoa para fazer uma conferência, um sacrifício danado! Sabe o que eu fazia? Acho que foi a única vez da vida que cometi ilícito, mas foi por uma causa boa. Não tinha um centavo para pagar para o conferencista; no máximo, arranjava uma passagem de ônibus para ele. Então, eu hospedava o conferencista na minha casa, comprava nota de hotel e o dinheiro que sobrava dava para o conferencista. Não podia fazer de outra forma. Foram épocas muito difíceis, porque sair é difícil tem que se habituar a uma nova cultura e ficar talvez seja pior. Não foi fácil não! Porque se você é presa é ruim e se não é, passa a ser uma pessoa duvidosa, suspeita. Para uns não, porque têm certeza que você come criancinha; mas para outros, você é suspeita. Ficamos ambos em Araraquara.


A tese foi publicada em 1969. Veja as contradições. Imagina publicar um assunto daqueles que não pertencia à academia, não era considerado legítimo, não tinha nenhuma legitimidade, feito por uma mulher e ainda comunista que metia a lenha na Igreja católica. Uma amiga minha, que agora está em Brasília, conhecia o casal que era dono da Quatro Artes. A primeira edição é da Quatro Artes, São Paulo. Até moravam aqui na avenida São Luis e a editora era também na São Luis. A Linda, que naquele momento morava no Rio, me disse: “conheço fulano, ele tem uma editora aí e talvez aceite se você conseguir um co-editor”. O Saffioti ia para o Rio porque ele defendeu a livre-docência no mesmo ano em que eu, mas ele já foi para lá doutorado, era inteiramente diferente o caso dele. Eu estava recém-formada ignorante. Ele tinha treze anos mais que eu e pôde fazer. O Saffioti ia para o Rio fazer algumas coisas e, dentre elas, ia levar a livredocência, que foi sobre raios infra-vermelhos; não é bem isso, são vínculos, laços... pontes de hidrogênio nos raios infra-vermelhos. É um assunto muito restrito e não teria viabilidade econômica. Então, ia levar a livre-docência dele ao Instituto Nacional do Livro. Falei: “bom, já que vai ao Rio, você podia entregar à Zahar para mim?” Mas ele era o tipo mais louco, loucura mansa, que se pode imaginar! Chegou ao Rio, ele pensou: “por que a Zahar? Eu vou entregar ao Instituto Nacional do Livro”. Também folgado, era mais fácil. Entregou as duas ao INL, que era do MEC. Só doido mesmo para entregar aquilo ao MEC! E não é que o MEC topou fazer a co-edição! E o cara daqui aceitou a primeira edição. A Vozes escreveu na verdade a segunda e depois a terceira edição, porque não era dela. Era a primeira dela, mas a primeira do livro é da Quatro Artes. Depois saiu nos EUA. Eu fui aos EUA, já tinha morado um ano lá e tinha ficado muitos sem ir até lá. E no começo de 1972 – o feminismo era o quente dessa época – eu fui. Até fiz uma montanha de entrevistas, atravessei todo o país parando onde tinha amigos e fazendo entrevistas com feministas, mas até hoje não escrevi nada sobre isso. Entrevistas que, se as fitas não estragaram, estão aí. Eu era tão ignorante, só conhecia a Monthly Review, como editora de esquerda que publicava até a revista e, na época, só em espanhol e depois passou a publicar em português também. Hoje acho que só em inglês, não assino mais, não sei se existe. Conhecia essa e me informaram nos EUA que a Synopse era meio de centro. Eu fui, não conhecia absolutamente ninguém da área de editora, e entreguei um exemplar em cada uma e em português. E não é que eles pagaram tradução, pagaram tudo e saiu pela Monthly Review! Duas edições! Nos EUA não fez grande sucesso, fez na Europa. Porque eles têm dois escritórios: um em Londres e um em Nova York. Foi super resenhado na Europa toda! E em línguas que eu não leio, que precisava pedir a alguém traduzir para mim. 


Esse livro, claro que hoje faria alguns reparos, mas a tese central continua valendo. Muito gente diz: “Ah, mas você diz no livro que à medida que o capitalismo se desenvolve, o mercado se restringe para as mulheres, mas não é isso que acontece. Você vê as tabelas da Cristina Bruschini?”. Eu digo: “São duas coisas diferentes! Eu trabalho com modo de produção. A Cristina não quer nem ouvir falar em conceito, ela não gosta de teoria, não faz segredo disto”. Então, são dois enfoques diferentes. Vai ver onde estão as mulheres! (...)


Fonte: Entrevista – Heleieth Saffioti por ela mesma: antecedentes de “A mulher na sociedade de classes”*