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'Nenhuma força policial armada deveria ser enviada para lidar com protestos estudantis', diz relatora da CIDH

06 de Maio de 2016 às 09:18:47

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) realizou audiência nesta quinta-feira (07/04) em sua sede em Washington, Estados Unidos, sobre o uso abusivo da força pela Polícia Militar do Estado de São Paulo contra estudantes secundaristas durante os protestos realizados pelos adolescentes em 2015.


O Comitê de Mães e Pais em Luta, formado por pais de alunos da rede pública de ensino em São Paulo, e a organização Artigo 19 levaram o caso à CIDH – que é um órgão autônomo da Organização dos Estados Americanos (OEA) – para que fosse analisado pelos relatores e obtivessem um parecer do Estado brasileiro.


A ação da PM paulista contra os protestos estudantis e ocupações das escolas da rede estadual chegou aos ouvidos dos relatores por meio de depoimentos de três estudantes, que viajaram a Washington acompanhados de Tereza Cristina Lopes da Rocha, representante do Comitê de Mães e Pais em Luta e mãe de um aluno da escola Fernão Dias, em Pinheiros, na capital paulista. Ela foi a primeira escola a ser ocupada pelos secundaristas contra o plano de reorganização escolar do governador Geraldo Alckmin (PSDB).


Em entrevista a Opera Mundi, Margarette May Macaulay, uma das relatoras da CIDH, condenou o uso abusivo da força policial nos protestos estudantis em São Paulo em 2015.


“Sim, eu condeno completamente o uso da força policial sobre os protestos dos estudantes. Nenhuma força policial armada de nenhuma forma (letal ou não letal) deveria ser enviada para lidar com protestos estudantis. Especialmente neste caso, em que eram crianças e adolescentes menores de 18 anos. Não se pode mandar policiais vestidos com fardas de choque para um protesto assim”, criticou Macaulay.


A reportagem de Opera Mundi procurou a Polícia Militar de São Paulo e aguarda um posicionamento do órgão.


Protestos contra a reorganização escolar


Em setembro de 2015, foi anunciada pelo governo do Estado de São Paulo a transferência de mais de um milhão de alunos para dividir as escolas por séries num projeto de reorganização escolar.


Na ocasião, profissionais da educação, professores e alunos reclamaram da falta de diálogo e transparência do governo de Geraldo Alckmin (PSDB) para esta decisão. Um dos motivos que levaram aos protestos foi o anúncio do fechamento de escolas, que foram ocupadas pelos estudantes. Em dezembro, mais de 200 prédios haviam sido tomados pelos secundaristas.


 Margarette Macaulay disse ter ficado “comovida” ao ver imagens da repressão policial durante manifestações e ao ouvir depoimentos dos estudantes que compareceram à audiência na sede da OEA.


Margarette Macaulay: 'condeno uso de força policial em protestos de estudantes'


“Em todos os países há estudantes protestando. Penso que as autoridades do Estado devem levar em conta que eles são adolescentes em desenvolvimento e deve ser-lhes aberto o espaço para que se manifestem”, argumentou.


A relatora, que já foi juíza da Corte Interamericana de Direitos Humanos, com sede na Costa Rica entre 2007 e 2012, afirma que o fato de os manifestantes não terem obtido permissão das autoridades para sair às ruas não diminui a legitimidade dos protestos e a necessidade de garantir que seus direitos humanos fossem preservados.


“Para mim, não importa se eles (estudantes) receberam ou não a permissão para ir às ruas. A polícia tinha que garantir a segurança e ajudar a organizar o protesto na rua. Eu gostaria de saber em detalhes que tipo de treinamento voltado para os direitos humanos as polícias recebem no Brasil para que possamos examinar e fazer recomendações sobre isso. Cada membro da polícia deve ter um treinamento especial em direitos humanos e sobre como devem lidar com os direitos das crianças”, afirmou Macaulay.


A falta de permissão para os protestos foi um dos argumentos utilizados pelo procurador-geral do Estado de São Paulo, Elival da Silva Ramos, que esteve na audiência para defender o governo paulista. O procurador afirmou que os estudantes fecharam várias vezes a avenida Paulista, uma das principais da cidade de São Paulo, sem aviso prévio e impediram o trânsito e a circulação de pessoas numa área onde há muitos hospitais.


“Não recebemos formalmente nenhuma representação ou denúncia que pudessem consubstanciar alguma violação do Estado brasileiro. Se estes fatos ocorreram, que sejam levados aos órgãos de direito como o Ministério Público para serem objeto de avaliação. O governo do Estado de São Paulo aguarda que estes fatos sejam levados para apuração e punição se for o caso. Se houve abuso, será punido. A reação foi proporcional a cada caso”, declarou o procurador-geral de São Paulo.



Protestos contra fechamentos de escolas em SP tomaram ruas da capital e do interior do Estado


“Vamos ficar de olho”, diz relatora


Em entrevista a Opera Mundi, Macaulay afirmou que, em geral, “os Estados são sempre lentos” em relação a investigações de violações cometidas por policiais ou abuso da força. “O procurador disse que devem tomar ações. Estamos esperando que isso aconteça e vamos ficar de olho. Quando um policial algema uma criança e a leva para uma delegacia, ela deve receber representação legal. E nesse caso, não foi o que aconteceu. O Estado disse que chamou os pais e tutores, mas muitos estudantes ficaram horas sem ter contato com seus responsáveis. Não se pode manter crianças sob custódia dessa forma”, ressaltou.


Já o advogado peruano Francisco José Eguiguren, relator da CIDH para o Brasil, afirmou que é preciso haver muita cautela para analisar casos de manifestações, especialmente quando envolvem crianças.


“Foi uma experiência inesquecível ouvir hoje os depoimentos de jovens estudantes sobre fatos de que eles participaram e em que foram vítimas de repressão. Está claro que este é um direito de liberdade de expressão e de manifestação pacífica e é preciso ser muito cuidadoso nestes casos de expressão de um direito que leva em conta crianças”, disse a Opera Mundi.


Por outro lado, o relator afirmou que há também o direito de o Estado controlar e impor a ordem, “mas deve se dar uma articulação proporcional e respeitosa ao exercício de direitos, além de ter muito cuidado para não se criminalizar o protesto”.


Na opinião de Eguiguren, o “ideal” é chegar a um nível de diálogo que evite a necessidade de recorrer a qualquer ato repressivo. A força deve ser o “último remédio” e não uma prática, acredita ele.


“Sem dúvida me preocupo [pelo fato de estudantes serem reprimidos em manifestações]. Em vários países da América Latina tem havido esta preocupação de jovens pelo direito à educação com qualidade”, afirmou.


“Vejo [estes protestos estudantis] de forma muito positiva. Vamos avançar mais quando mais pessoas mais cedo exercerem sua cidadania e seu direito à participação. Que os direitos humanos passem dos tratados e dos discursos a serem vividos e entendidos pelos próprios cidadãos. Se neste caso forem adolescentes, ainda melhor”, concluiu o relator.



Tereza Cristina Rocha viu pela televisão, ao vivo, o filho sendo preso


“Me senti impotente ao ver meu filho preso ao vivo”


Tereza Cristina Lopes da Rocha, 42 anos, testemunhou a prisão de seu filho em cadeia nacional. Moradora da Vila Sônia, zona sul de São Paulo, ela é mãe de um estudante de 16 anos da Fernão Dias.


Ela representou, em Washington, o Comitê de Mães e Pais em Luta. Este grupo reúne apoiadores dos secundaristas contrários à reorganização escolar do governo Alckmin. “Me senti apreensiva e impotente ao ver meu filho sendo preso ao vivo pela TV. Hoje me emociono ao lembrar que os estudantes foram agredidos”, disse a Opera Mundi.


Tereza desembarcou nos Estados Unidos acompanhada de três adolescentes para prestar seu depoimento na esperança de obter uma resposta por parte do governo brasileiro. Na sua opinião, contudo, os estudantes não receberam um posicionamento satisfatório por parte do Estado.


“Eles falaram que nós não recorremos; pelo contrário, recorremos sim ao Ministério Público e entregamos documentos. É uma farsa o Estado dizer que não denunciamos. Eu mesma fui à delegacia quando meu filho foi preso e fui impedida de fazer um boletim de ocorrência. Vários pais foram ameaçados também quando chegaram à delegacia”, afirmou Rocha.


Segundo Camila Marques, advogada da organização Artigo 19 que apresentou as denúncias da repressão aos protestos e acompanhou Tereza e os estudantes à CIDH, a resposta brasileira perante a Comissão não foi suficiente e apenas justificou a atuação repressora para garantir a proteção do patrimônio e a ordem pública.


“O que chamou a atenção no caso dos protestos é que o Estado brasileiro continua a utilizar e a sofisticar seu aparato repressor. É extremamente preocupante o fato de que se trata de crianças e adolescentes que deveriam ter seus direitos garantidos. Me preocupa também o Estado negar e continuar justificando que age para a proteção do patrimônio público e da ordem. Os direitos democráticos estão incluídos no conceito de ordem pública”, disse a Opera Mundi.


A ONG apresentou aos relatores da CIDH um dossiê relatando as detenções de mais de 100 estudantes, além de indicar o uso abusivo de spray de pimenta e bombas de efeito moral para contra os alunos e de tortura psicológica por ameaças aos estudantes e professores.


Na avaliação de Marques, o parecer do governo brasileiro não “sinaliza que vai se adequar à legislação internacional. Foi uma indicação de que as violações se manterão”.


A advogada garante não ser um esforço perdido sair do Brasil e denunciar os casos na OEA. “Essa audiência hoje foi um grande passo para que a gente consiga começar uma interlocução com o governo, ampliar a cobrança e que a CIDH consiga compelir o Estado brasileiro a se adequar às normas internacionais. Além de trazer visibilidade e provocar o Estado a revisar suas práticas”.


Os relatores da CIDH estão em processo de negociação com o governo brasileiro por meio da missão permanente do Brasil junto à OEA para definir uma data de visita ao país. O relator Eguiguren espera que a viagem ocorra ainda este ano.


Os relatores não precisam necessariamente ser convidados pelo governo para visitarem o país. Entretanto, segundo Macaulay, se o convite partir das autoridades a viagem adquire um caráter oficial.


“Não preciso ser aceita pelo país, posso ir por outros convites como de organizações. Mas se o Estado nos convidar, seria mais importante e permitiria que elaboremos um relatório mais completo", concluiu a relatora.


 


Fonte: Opera Mundi