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O Brasil de Sheherazade em tempos de crise na mídia. Rachel Sheherazade não está sozinha, o que ocorre é que cada vez mais temos a ascensão da comunicação de massa e uma diminuição da presen&c

01 de Março de 2014 às 17:12:24



Hélvio Alexandre Mariano








A cena do jovem acorrentado nu a um poste, na cidade do Rio de Janeiro, chocou o Brasil e o mundo há poucos dias. O menino foi preso com uma corrente destinada a bicicletas, mas que no Brasil, capital mundial da desigualdade e da intolerância de classe, foi usada por grupos de justiceiros, que se dizem guardiões da ordem e da segurança pública, em substituição ao Estado democrático de direito. Além de preso, o jovem foi espancado, humilhado e linchado em redes sociais e canais de televisão.

A imagem que o mundo viu, da cidade que pretende sediar a final da Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016, foi agravada pelo comentário extremamente infeliz e preconceituoso da jornalista Rachel Sheherazade, âncora do principal telejornal do SBT, que classificou o adolescente como "marginalzinho", justificando a atitude dos "vingadores" como compreensiva e que restaria, segundo Sheherazade, "ao cidadão de bem, que ainda por cima é desarmado? Se defender é claro". Interpretar a fala de Sheherazade não é tarefa fácil, porém, gostaria de fazer uma pequena tentativa, usando para tanto um conceito do historiador Raymond Willians, ao fazer uma leitura das dificuldades de interpretação de culturas diferentes ao mundo capitalista-ocidental, quando percebemos que "uma intenção social, cultural ou política - ou, podemos dizer, sua negação - se forma não - ou pelo menos não necessariamente - a partir dos objetos de análise, mas a partir da nossa consciência prática e de nossas filiações reais no interior de relações reais e gerais, com outras pessoas, conhecidas e desconhecidas".

Desta forma, ao acusarmos Sheherazade de defender a violência e o justiciamento, deixamos de lado toda sua formação social, cultural e intelectual, como se ela fosse de domínio e conhecimento comum. Simplesmente rotulamos Sheherazade como conservadora, sem discutir o que de fato significa o pensamento conservador, que é muito diferente de defender a barbárie, como a apresentadora fez em rede nacional.

Quando desviamos o foco para o papel público do jornalista vinculado a uma emissora de televisão, entramos em um campo de contradições que são gerados pelo momento em que vive a própria "mídia" e a relação entre o jornalista à emissora de televisão, como instituição dominante ligada à dominação, e a população em geral. Só podemos ter um comentário de Sheherazade pelo simples motivo de que a mídia está em crise, e isto ocorreria porque a sociedade está em crise. Ora, ao afirmar que a mídia está em crise, podemos pensar que também existe uma crise do papel dos jornalistas que trabalham neste espaço, que faz parte de uma concessão pública, que só é possível num Estado democrático de direito. Assim, a crise da mídia seria a crise da sociedade. É preciso lembrar, como nos ensina Edward Said, ao falar do papel público que  possuem muitos intelectuais e podemos incluir aqui jornalistas, "que o lucro e a celebridade são estimulantes poderosos" e que o mundo do "think thanks (ou usinas de ideias) que existem em vários programas de entrevistas na televisão, rádio, jornais e revistas atesta como o discurso público estaria densamente saturado de interesses, autoridades e poderes cuja extensão em conjunto é literalmente inimaginável em alcance de  variedade, exceto que essa totalidade tem uma relação central com a aceitação de um estado de pós-bem-estar-neoliberal insensível tanto à cidadania quanto ao meio ambiente natural, mas receptivo a uma imensa estrutura de corporações globais não restringidas  por barreiras tradicionais ou soberanias".

Desta forma, Rachel Sheherazade não está sozinha, o que ocorre é que cada vez mais temos a ascensão da comunicação de massa e uma diminuição da presença pública dos intelectuais neste debate. Desta forma, o que ocorre é uma perda significativa do papel do intelectual público para novos especialistas de plantão, que assumem o domínio de diversos temas, teorizando muitas vezes sobre assuntos que não dominam, porém, sob os olhares atentos da mídia, gozam de um poder de influência nunca antes visto.

Estes especialistas fazem dos canais de televisão, da rede mundial de computadores e de jornais e revistas seus principais veículos de divulgação das suas ideias, que na maioria das vezes consiste em não ter ideia nenhuma, a não ser um amontoado de recortes de falas diversas sobre temas variados. Rachel Sheherazade faz parte desta estrutura midiática que se mantém inalterada no atual "Cidade Alerta" e nos  extintos "Aqui e Agora" e das amareladas páginas do jornal "Notícias Populares", que desfilam seus preconceitos de raça, de classe e de opção sexual em rede nacional, recebendo altas somas de dinheiro para este trabalho. Quem sabe ela não acabe presidindo a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados num futuro próximo, pois a vaga estará em breve aberta com a saída de Marco Feliciano.

Professor doutor do Departamento de História da Unicentro em Guarapuava
h-mariano@uol.com.br


Fonte: Jornal Diário de Guarapuava