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“Vitória” temporária da diretoria da USP contra os servidores e o direito de greve

20 de Julho de 2016 às 10:40:11

 


Jorge Luiz Souto Maior, Professor de Direito, USP


A julgar pela comunicação, por email, enviada em 15 de julho de 2016, a direção da Universidade de São Paulo está feliz (e comemora) com a vitória judicial que obteve sobre seus adversários, os servidores da Universidade, no que tange ao corte de salários, conduzindo, maliciosamente, os interlocutores a entender que a situação é definitiva, enquanto se trata, em verdade, de mera avaliação liminar da questão.


A direção da universidade escolta-se em uma suposta obrigação de efetuar o desconto dos salários, mas sua intenção, por certo, sempre foi a de encerrar a greve impondo sacrifício de sobrevivência aos servidores. O relato de que ofereceu a oportunidade de manter o pagamento com o compromisso de reposição é retórico, pois, na prática, bem sabe que isso equivale a negar a validade do movimento grevista, com o que, portanto, por óbvio, os servidores não poderiam assentir.


O estranho de tudo isso é que a administração da Universidade não é um ente que se vale em si, tendo a obrigação de atender aos interesses de todos que integram a universidade e os servidores, por certo, são parte essencial da instituição. Assim, equivale a desvio de função tratar os servidores como inimigos, negando-lhes o direito fundamental de, pela via sindical e a ação coletiva, efetuarem a defesa de seus direitos trabalhistas.


O mais grave, no entanto, é que a USP militou não apenas contra os servidores mas contra a classe trabalhadora em geral, utilizando todos os seus esforços para provar que é um direito – e, mais, um dever – do empregador efetuar o desconto dos salários dos trabalhadores em greve. Vendo-se amparada pela força de seu nome, construído exatamente por seus quadros de professores, servidores e alunos (grevistas e não grevistas), e pelo apoio da grande mídia, quando não de parte da inteligência produzida internamente na própria instituição, conseguiu convencer a Justiça do Trabalho, a qual, assim, proferiu uma decisão que, sem a devida reflexão, “data venia”, feriu a ordem jurídica e até mesmo preceitos da lógica argumentativa.


As ilegalidades cometidas pela direção da USP, portanto, foram inúmeras e a greve se apresentou, sem a menor dúvida de avaliação, como a única e legítima forma de tentar barrar o cometimento dessas ilegalidades.


Não bastasse isso, em 16 de maio, a direção da universidade, seguindo orientação do CRUESP, anunciou que daria apenas 3% de reajuste salarial, descumprindo, como já fizera em 2014, o direito constitucionalmente garantido aos servidores da recomposição anual dos salários (inciso X, do art. 37, da CF), pois o índice inflacionário do período (de maio de 2015 a maio de 2016) foi superior a 11%[1].


E não se pode ter qualquer dúvida de que não conferir a recomposição, descumprimento obrigação constitucional, configura um ato ilícito e o argumento da impossibilidade orçamentária pode até ser economicamente relevante mas não descaracteriza a ilicitude, que também não se elimina pela oferta de uma recomposição bem inferior àquela que seria devida, considerando o índice inflacionário anual.


Não fosse assim, qualquer pessoa, passando necessidade econômica, poderia entrar em um supermercado, pegar um produto e sair sem pagar e quando fosse abordada dizer que não tem o orçamento necessário para cumprir a obrigação referente à despesa e sair ilesa de qualquer responsabilização. Aliás, em se tratando de crime famélico, não haveria efeito jurídico concreto mesmo, mas não é esse o caso da USP, até porque quem foi deixado em estado de necessidade alimentar foram os servidores, a quem se negou a recomposição salarial e não a USP, sendo que, ainda, se negou aos servidores o recebimento do próprio salário.


E não se diminua o sofrimento de quem deixa de receber um reajuste, garantido constitucional, e quanto ao qual, portanto, tem legítima previsibilidade quanto ao recebimento, pois os compromissos obrigacionais dessas pessoas também sofrem igual, ou superior, reajuste, fazendo com que se estabeleça um enorme descompasso no orçamento familiar, quando não, necessidades extremas.


A ordem jurídica, como tradicionalmente aplicada, não garante aos trabalhadores a quem não se efetivou o pagamento do reajuste salarial (ferindo a regra básica da lógica capitalista, que é a previsibilidade a possibilidade de se verem livres das obrigações assumidas com Bancos, casas comerciais, contas de luz, água, telefone e supermercados por meio da utilização do argumento de défict orçamentário.


Então, o que se está assistindo é o espetáculo grotesco de se verem justificados os sofrimentos impostos aos servidores da USP (resvalando em toda a classe trabalhadora) por uma suposta aplicação da ordem jurídica, mas partindo de um pressuposto de que as normas desse mesmo ordenamento, das quais os servidores são titulares, podem ser desrespeitadas.


O inciso X do artigo 37 da Constituição Federal foi simplesmente negado como um direito, pois se tivesse sido atendido enquanto tal não se chegaria à conclusão judicial à que se chegou, afinal, a própria decisão reconhece que os salários são devidos quando o empregador comete uma ilegalidade.


No fundo, o que se acabou dizendo, certamente sem maiores reflexões, dada a urgência que se requer das decisões judiciais, impossível de ser atendida dado o volume de trabalho a que os juízes são submetidos, foi que a USP pode descumprir várias obrigações legais perante os servidores e estes não têm o direito de se insurgir, a não ser que estejam dispostos a sofrer nova violência do seu algoz, que, no caso, de forma totalmente desviada de lógica de finalidade, é aquele que deveria administrar os interesses coletivos da universidade e não atuar com base em um projeto privatizante não debatido democraticamente no seio da universidade.


De todo modo, ao contrário do que sugere o “malicioso” email enviado pela administração da universidade, a questão não está decidida de forma definitiva, mantendo-se, pois, a esperança de que o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, por intermédio da sua Seção de Dissídios Coletivos, que, sem favor algum, está entre as melhores do Brasil, no quesito compreensão dos legítimos interesses da classe trabalhadora, perceba a contradição contida na decisão liminar e reverta essa situação, que poderia consolidar um grave atentado à ordem jurídica constitucional trabalhista e aos Direitos Humanos.


Enquanto isso, o que compete a todos e todas que compreendem as aflições e sofrimentos que os administradores da USP impuseram aos trabalhadores e trabalhadoras que, com sacrifício pessoal, se dispuseram a lutar pelo respeito à Constituição, é expressar sua solidariedade concreta por meio da contribuição com o fundo de greve, cabendo deixar claro que tomarei essa medida assim que concluir esse texto.


São Paulo, 19 de julho de 2016.


Fundo de Greve (SINTUSP): Banco do Brasil, Agência 7068-8, Conta Poupança 5.057-1 (variação 51).


 


Fonte: Sean Purdy