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A ditadura acabada: coroamento de uma série historiográfica revisionista

27 de Setembro de 2016 às 14:15:52

Recentemente veio a público o livro A ditadura Acabada, do jornalista Elio Gaspari, quinto volume de sua série de livros que aborda o Golpe de 1964, a ditadura e o processo de transição. Embora a publicação deste último tenha sido adiada inúmeras vezes e o conhecimento sobre a ditadura e a transição tenham avançado neste período, a perspectiva de interpretação mantém-se basicamente idêntica. Como nos volumes anteriores, a narrativa organiza-se a partir das ações dos “grandes homens”, como Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva, tratados com explícita simpatia pelo autor.


O conjunto da obra é marcado por uma perspectiva revisionista, que permeia suas proposições centrais: a) a esquerda seria responsável pelo desencadeamento do Golpe de 1964; b) a ditadura teria iniciado “envergonhada”, radicalizando-se apenas a partir de 1968 e por responsabilidade exclusiva da fração “linha dura” dos golpistas; c) as organizações de resistência armada à ditadura seriam essencialmente antidemocráticas; d) Geisel e Golbery seriam os grandes responsáveis por terem desconstruído a ditadura e encaminhado a transição; e) o formato pactuado da transição pelo alto teria sido um grande acerto, possibilitando a superação da ditadura. Tais proposições articulam-se a juízos pessoais acerca dos personagens destacados pelo autor e reforçam uma abordagem elitista e conservadora, em termos análogos aos da historiografia revisionista.


Um Golpe improvisado, uma ditadura envergonhada


Para Gaspari, o Golpe de 1964 teria sido reação a um suposto “golpe de esquerda” que estaria em andamento, com a cumplicidade do presidente João Goulart. Assim, desconsidera o papel da burguesia brasileira e internacional na conspiração, e responsabiliza as vítimas (Jango e as esquerdas) pelo Golpe sofrido. João Goulart é sumariamente desqualificado como “um dos mais despreparados e primitivos governantes da história nacional”, que estaria articulando um Golpe que “se destinava a mantê-lo no poder”. O processo de conspiração é ignorado, assumindo-se que a intervenção militar teria sido uma ação improvisada e sem planejamento nem preparação anterior e motivada por razões essencialmente militares.


As diferenças entre os militares usualmente qualificados como “linha dura” e “Sorbonne” são hipervalorizadas, de forma a produzir uma visão positiva dos últimos, especialmente de Castelo Branco, cuja indicação à presidência (que consolidou o Golpe) é narrada como se fosse um evento da maior normalidade constitucional: “o general Humberto de Alencar Castello foi eleito presidente da República pelo Congresso Nacional, como mandava a Constituição”. Sua sobre o governo Castelo Branco não permite que seja compreendido como governo que institucionalizou a ditadura, com centenas de cassações e prisões, a disseminação da prática da tortura, o fechamento dos partidos políticos, a instituição da censura e a constituição do aparato repressivo que propiciou a posterior intensificação da repressão.


A narrativa de Gaspari isenta os chamados “moderados” de suas responsabilidades, e desloca a referência temporal decisiva de 1964 para 1968, considerando o Ato Institucional número 5 como momento da marco de ruptura mais relevante do que o próprio Golpe de 1964, o qual teria efetivado a passagem de uma “ditadura envergonhada” para uma “ditadura escancarada”.


O governo Costa e Silva é tratado com bem menos condescendência. A partir daqui, são relatadas as torturas e violências cometidas pela ditadura, acentuando a pretensa contraposição com o período supostamente menos repressivo da ditadura envergonhada. Ainda assim, não se reconhece a repressão como política de Estado, mas ao contrário, supõe-se que ela seria gestada espontaneamente nos porões da ditadura, como produto da “anarquia do regime militar”. Mais ainda, supõe uma suposta complementariedade entre o aparato repressivo e as organizações de resistência, que teriam “um interesse em comum: assegurar a continuidade da ameaça terrorista [sic], negando que a morte de Marighella fosse resultado do abalo da estrutura da ALN. Senão, uns ficariam sem revolução e outros sem ocupação”. Sua crítica às organizações armadas é inteiramente descontextualizada e generalizante: “A luta armada fracassou porque o objetivo final das organizações que a promoveram era transformar o Brasil em uma ditadura, talvez socialista, certamente revolucionária. Seu projeto não passava pelo restabelecimento das liberdades democráticas”. Esta abordagem omite as condições concretas que determinaram a opção pela resistências armada e deixa de levar em consideração as expressivas diferenças estratégicas que dividiam as inúmeras organizações.


O elogio dos ditadores


Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva são os personagens centrais escolhidos por Gaspari, e a eles é dedicada a série “O Sacerdote e o Feiticeiro”, que inclui os três últimos volumes da obra. Aqui a obra assume uma caráter mais explicitamente personalista: Geisel (o “sacerdote”) e Golbery (o “feiticeiro”) seriam os grandes responsáveis pela abertura política. O primeiro teria decidido acabar com a ditadura e dedicado seu mandato a este fim. O segundo teria formulado a estratégia para colocar em prática aquela decisão. Ambos teriam em comum “o propósito de desmontar a ditadura” e de “restabelecer a racionalidade e a ordem”.


O projeto de distensão proposto por Geisel aqui deixa de ser considerado uma estratégia que visava a manutenção do controle sobre o processo e a institucionalização do arcabouço jurídico criado na ditadura, para ser considerado simplesmente como uma estratégia para o desmonte da ditadura, a partir da opção individual do ditador de turno, apoiado por um fiel colaborador. Nestes marcos, são apresentadas positivamente todas as intervenções que se situem dentro dos marcos do projeto distensionista e são desqualificadas aquelas que contestavam seus fundamentos ou sua forma de implementação. Assim, tanto colaboradores da ditadura como opositores moderados são apresentados como “realistas” e “pragmáticos” sempre que subordinavam sua ação política ao apoio ao projeto de distensão, enquanto os que o recusavam eram tratados como “radicais” – termo usado simultaneamente para designar oposicionistas que pretendiam um processo mais amplo e rápido e integrantes do aparato repressivo que recusavam qualquer abrandamento da ditadura.


A trama de Gaspari organiza-se em torno do conflito no interior da ditadura que antagonizou Geisel e seu Ministro da Guerra Sylvio Frotta, de tal forma que o quarto volume encerra-se com a demissão do último. O conflito entre ambos é inegável, assim com as diferenças entre os grupos que ambos integravam. Isto não autoriza, no entanto à conclusão de que Geisel efetivamente queria desmontar a ditadura, até porque sua ação foi de sistemática preservação do aparato repressivo em seus aspectos fundamentais, mesmo em um contexto de derrota definitiva da luta armada, chegando inclusive a incrementá-lo como novas medidas atentatórias às liberdades democráticas, como as que constavam no Pacote de Abril de 1977.


Assim, os volumes três e quatro consolidavam uma perspectiva segundo a qual a história se produz pelas ações dos “grandes homens” e na qual a polarização fundamental seria entre “radicais” e “moderados” e não mais entre apoiadores e críticos da ditadura. Além disso, deixava de considerar ilegítimo o mandato de Geisel e a institucionalidade que o sustentava. Os doze anos que se passaram entre a publicação do quarto volume e o lançamento deste último e as diversas avaliações críticas em relação a sua interpretação publicadas no período abriam a expectativa de que a nova publicação trouxesse algum avanço analítico. Não foi, no entanto, o que aconteceu.


A ditadura acabada


A publicação do quinto volume da série está anunciada desde 2002, mas foi adiada inúmeras vezes, concretizando-se apenas em junho de 2016. Ao apresentar o plano da obra, Gaspari indicava que este volume trataria apenas dos últimos quatorze meses do governo Geisel, deixando de abordar o último governo da ditadura, com base em uma explicação pouco razoável: “Como não tenho interesse pelo governo do general Figueiredo, sua administração ficará no esquecimento que pediu”. Esta escolha parecia corroborar com a tese implícita de que a ditadura se encerrou com o Governo Geisel, algo que se verificaria insustentável com uma abordagem do governo Figueiredo. No entanto, por razões que não são explicadas ao leitor, este planejamento foi alterado e parte do livro é dedicada ao governo Figueiredo.


A ditadura acabada constitui-se de partes bastante desiguais. A primeira narra os últimos meses do governo Geisel em um tom laudatório que é sintetizado no título “Geisel ganhou todas”. As três partes seguintes abordam o que seriam as três explosões ocorridas durante o governo Figueiredo: “A explosão da economia”, “A explosão do Planalto” (sobre os atentados terroristas promovidos pela extrema-direita militar), e “A explosão das ruas”. A quinta parte dedica-se à construção da candidatura de Tancredo Neves. Para finalizar, há um extenso e confuso “Epílogo”, com a promessa de que nelas “irão contadas as vidas de quinhentas pessoas que nela viveram e viram seu final [na/da ditadura]”.Com poucas linhas por personagem, o Epílogo fica reduzido a um conjunto de informações superficiais, desconexas e desarticuladas, em um texto de qualidade nitidamente inferior ao restante da obra.


A primeira parte é um prolongamento dos dois volumes anteriores, com um tom mais explicitamente entusiástico em relação às “vitórias” de Geisel, que no fundamental remetem à manutenção do controle sobre os setores militares recalcitrantes e à imposição da candidatura de João Baptista Figueiredo a sua sucessão. O adversário a ser batido agora passava a ser o “MDB intransigente”, que “mantinha-se preso à bandeira da convocação de uma Constituinte que presumia a queda do regime” (p. 61). Aceitável, para Gaspari (como para os ditadores) seria uma oposição de acatasse a manutenção da ditadura como preço a pagar pela lenta distensão. Um “pragmático”, como Fernando Henrique Cardoso, era elogiado por defender “que a Constituinte não devia ser ‘a palavra de ordem inicial’” (p. 62).


Em nome do gradualismo, o autor recusa as reivindicações concretas que poderiam efetivamente encaminhar a superação da ditadura além dos limites estabelecidos pelos ditadores – Constituinte, revogação do Pacote de Abril e anistia ampla geral e irrestrita -, pois para Gaspari elas “pressupunham a capitulação de um regime que não tinha contra si o povo nas ruas e já não padecia de uma ameaçadora divisão” (p. 62) Algo, portanto, que segundo sua análise a dupla Geisel e Golbery não teria porque aceitar. A anistia geral e irrestrita é desqualificada segundo os mesmos argumentos usados pelos ditadores, já que incluiria os que “praticaram crimes capitulados no Código Penal” (p. 88). Dos quadros da “oposição” consentida, Tancredo Neves emerge como liderança mais conforme aos rumos impostos pelos ditadores, e com isto tem a total simpatia de Gaspari. Para ele, Neves seria “valiosíssimo aliado” da proposta gradualista, em oposição ao supostamente “radical” Franco Montoro, que “apresentara proposta de emenda constitucional restabelecendo imediatamente eleições diretas para os governos estaduais e a extinção da figura dos senadores ‘biônicos’” (p. 70). Tancredo seria “o político oposicionista com maior experiência administrativa” (p. 233), e sua trajetória política seria marcada pela integral fidelidade a todos os governos aos quais serviu (p. 232). Gaspari reproduz a manifestação de Tancredo contra a anistia ampla como reforço à posição que era defendida por Geisel e Golbery (e pelo próprio Gaspari): “(…) quem assassinou, por paixão política, um soldado na guarita, ou assaltou bancos. Isso é outro caso, é caso para a Justiça” (p.88)


Na segunda parte, Gaspari discute o agravamento da crise econômica, que é apresentado como resultado dos gastos excessivos realizado pelo governo Figueiredo, dissociando este processo das opções econômicas tomadas ao longo da ditadura (e em especial no governo Geisel). Assumindo uma perspectiva econômica liberal, o autor identifica a raiz do problema na falta de unidade do Ministério de Figueiredo e especialmente no crescente poder dos “gastadores”. Assumindo imagem proposta por Heitor Ferreira, identifica um “governo dialético” [sic]: “De um lado, o ‘Grupo A’, com Simonsen e Golbery; de outro o Grupo ‘B’, com Delfim e Andreazza” (139). Não é difícil perceber a simpatia do autor pelo grupo de Simonsen e Golbery. As opções supostamente heterodoxas de Delfim e os gastos irresponsáveis de Andreazza teriam provocado a “ruína econômica” que levou o país à solvência e obrigou que recorresse ao FMI.


No apagar das luzes de sua participação no governo Figueiredo, Golbery teria obtido duplo triunfo: a aprovação da Anistia parcial e a articulação da derrota da greve do ABC em 1980, quando “depois de 42 dias parados, os trabalhadores voltaram às fábricas sem nada” (p. 169). Mesmo as greves de 1979, que propiciaram extraordinária manifestação de força política dos trabalhadores e consequente desgaste da ditadura, são desqualificada seguindo um cálculo sumário pelo qual os ganhos econômicos teriam sido anulados pelo desconto dos dias parados: “Aritmeticamente, a greve havia sido derrotada” (p. 144).


A parte seguinte trata da série de atentados terroristas perpetuados pela extrema-direita. Uma vez mais, Gaspari identifica um “governo dialético”, desta vez “nas relações com o aparelho repressivo” (p. 185). A “dialética” (entendida pelo autor como contradição, e muitas vezes até mesmo como confusão), no caso, se caracterizaria pelo fato de que o governo estava levando adiante a distensão, mas ao mesmo tempo era omisso no enfrentamento aos ataques perpetuados pelo “porão”. O acobertamento das responsabilidade pelo atentado do Riocentro, com clara cumplicidade de Figueiredo, ensejou a saída de Golbery do governo. Daí em diante, o tom de Gaspari passa a uma crítica mais contundente ao governo Figueiredo. Para ele, “Figueiredo e Medeiros [Otávio Medeiros, Chefe do SNI] estavam em formação de elefantes. Não só acobertariam a autoria do atentado, como mostrariam em que direção marchariam”. A demissão de Heitor Aquino completaria o “descaminho” de seu governo. A reação de ambos foi apoiar Paulo Maluf, desafeto público de Figueiredo, com “ostensivo engajamento” (p. 222). Daí em diante, o desastre de Figueiredo apenas acentuaria seu contraste com o governo Geisel: “Sem Simonsen, Golbery e Heitor, desaparecem os traços da equipe que Geisel levara para o palácio em 1974. Restava um grupo desconexo, pois Delfim desentendera-se com Leitão e detestava Medeiros, que o detestava” (p. 222).


A quarta parte é a mais sumária do livro e trata da campanha pelas Diretas Já. A suposta oposição entre as vias propostas por Ulisses (“radical”) e Tancredo (“moderada”) dá o tom: “Ulisses seguia um curso que pressupunha o colapso da ditadura, enquanto Tancredo esperava que ela acabasse numa negociação” (p. 238). O título desta parte – A explosão das ruas – cria a expectativa de que finalmente o autor concederia alguma atenção às manifestações sociais, o que novamente não se concretiza: a trama define-se, como sempre, pela ação dosgrandes personagens – Ulisses, Tancredo, Figueiredo, Maluf, etc.


Finalmente, na quinta parte do livro, Gaspari discute “A construção de Tancredo”, em uma narrativa que saúda o “pragmatismo” e “realismo político” que tornaram possível a consolidação de sua candidatura e eleição no Colégio Eleitoral imposto pela ditadura. Seu ponto de partida é a campanha pelas Diretas, mas ainda assim a ênfase é na capacidade de seus articuladores em construir uma ampla frente política. A derrota da emenda das Diretas Já no Congresso inauguraria “A hora de Tancredo” (título de um de seus capítulos), consolidada com atração do José Sarney, presidente do PDS, e a construção de uma dissidência no interior do partido de sustentação da ditadura, que daria origem à Frente Liberal. A abordagem de Gaspari é finalizada com a narrativa dos eventos relacionados à doença de Tancredo e aos bastidores da posse de José Sarney. Paradoxalmente, seu último parágrafo explicita um elemento de continuidade, registrando que no governo Sarney o repressor Freddie Perdigão Pereira “continuava no SNI” (p.311). Tal afirmação fica solta, sem conexão com a abordagem nem qualquer problematização.


O Epílogo destoa claramente do restante da obra, que é inegavelmente bem escrita, ainda que expresse uma visão conservadora do processo. A pretensão em trazer informações sobre quinhentos personagens, cuja escolha segundo o próprio autor “não obedeceu a um método preciso” (p. 317), é descabida e resulta numa colagem de informações desarticuladas. A média de quase 10 “vidas” por página (são 500 “vidas” para 69 páginas) implica em duas linhas por personagem. Em algumas seções – como “os presidentes”, “os ministros”, “os generais”, “os empresários” – há um pouco mais de informação, mas quando trata dos militantes da resistência, chega, chega a contabilizar vinte nomes em uma única página (p. 369), explicitando uma vez mais sua prioridade de abordagem.


Um único militante da esquerda armada recebe tratamento mais privilegiado, mas não porque sua trajetória na resistência se diferencie radicalmente das demais, mas por conta de suas posições revisionistas no presente: Gaspari reconstitui a trajetória no exílio de Daniel Aarão dos Reis Filho e registra que “foi o primeiro militante de uma organização armada a explicitar uma visão crítica da resistência armada” (p. 376), reproduzindo oito linhas de uma afirmação de Aarão na qual considera uma “lenda” que a luta armada tenha constituído uma resistência democrática. A referência à Aarão e a escolha do trecho citado explicitam simultaneamente a perspectiva ideológica e interpretativa de Gaspari e sua conexão com a historiografia revisionista.


 


Fonte: Blog Junho